Não matarás – Na Mostra Krzysztof Kieślowski

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 “A lei não deveria imitar a natureza, mas aperfeiçoá-la. A lei é uma ideia do homem para regular suas relações pessoais. Somos o que somos como resultado das leis que obedecemos ou infringimos. O homem é livre. Sua liberdade está restrita pelo direito à liberdade do próximo. E a punição… a punição é uma vingança, principalmente se pretende prejudicar o criminoso ao invés de prevenir o crime. Mas em nome de quem a lei se vinga? É realmente em nome do inocente [vítima]? E quem faz as leis é realmente inocente?” (Não Matarás – 1989)

O Decálogo (Dekalog) do diretor Kieslowski é um conjunto de filmes inspirados nos Dez Mandamentos. Não matarás, o mandamento V, é um dos médias metragens que compõem o decálogo. É preciso considerar que, apesar de independente, esse filme está inserido em um projeto específico, articulado com outros, formando com eles um todo temático. Os elementos que unem os dez filmes realizam de forma simbólica a unidade do projeto.

Não Matarás é uma história que traz um personagem cuja postura diante do outro não se enquadra dentro de um padrão de comportamento socialmente aceito. Talvez o que torne o tratamento do tema, pena de morte, tão interessante no filme de Kieslowski seja justamente a composição desse personagem: Jacek não parece capaz de consolidar uma relação de empatia, nem no plano diegético, nem com o espectador, esboçando, por vezes, elementos de um comportamento sociopata. Diante de tal postura, a rejeição moral do espectador em relação ao personagem ganha fôlego e o julgamento a seu respeito passa por um filtro, onde o castigo máximo seria a solução.

Os recursos usados pelo diretor criam um desconforto cada vez maior no espectador, esgarçando a tensão entre justiça e castigo: um protagonista jovem desajustado e sobre o qual se tem poucas informações; uma vítima tão pouco empática quanto o jovem assassino; um advogado em início de carreira, idealista, mas talvez inseguro e certamente impotente diante da máquina do Poder Judiciário; a exibição detalhada da burocracia implacável de um Estado que, em pleno ano de 1989, ainda condena à forca.

Kieślowski nas filmagens de Não Matarás – 1989

O cenário e os personagens são apresentados por meio do uso do espelho e de seus reflexos, numa abordagem quase típica nos filmes de Kieslowski, uma marca do diretor na insinuação do duplo. O diretor de fotografia ao fazer uso de um filtro propõe uma luz dura, perversa, impávida, tornando o filme em suspenso em seus sentidos, conduzindo o espectador a uma espécie de estranhamento.

            Há no cinema de Kieslowski uma angustia que provoca uma desconstrução de verdades absolutas. O que torna a crítica do filme precisa é o fato de que o diretor propõe um confronto entre dois crimes, dando o mesmo valor para as duas brutalidades.

Os personagens aparecem em cena simultaneamente, como que correspondendo ao chamado de um acaso. O aspecto da montagem, delegando simultaneidade aos desígnios dos homens em sua ligação entre si, pode apontar para a intenção do diretor de causar no espectador uma inquietação com sua ideia a respeito do assunto. De acordo com Kieslowski, é a etapa da montagem onde aflui a verdadeira conformação de um filme.