
“Haverá um ano em que haverá um mês, em que haverá uma semana em que haverá um dia em que haverá uma hora em que haverá um minuto em que haverá um segundo e dentro do segundo haverá o não tempo sagrado da morte transfigurada.” CL
Nunca queremos que acabe. Clarice Lispector, que sempre teve a morte como questão em sua escrita e em conversas por aí, provavelmente teria algo interessante para dizer sobre Suzana Amaral, a diretora e roteirista cinematográfica que potencializou ainda mais a vertigem da grande personagem de seu livro A hora da Estrela, Macabea. Suzana nos deixa exatamente no ano do centenário de Clarice. Agora as três estão mortas e eternas.
O que foi por alguns chamado de uma literatura menos hermética diante dos livros anteriores de Clarice Lispector, é apenas uma maneira de vincular a forma da escrita da autora a uma compreensão mais abrangente por parte dos leitores. O romance “A Hora da Estrela” forja uma objetividade quando “heteronimia” o autor, dando-lhe plenos poderes de narrador, um narrador ativo no discurso e frio no desdenho de sua personagem e objeto de reflexão existencial: Macabea. Clarice, o autor, destrincha a personagem como a um bicho abatido, prestes a ser devorado. Os gritos são para dentro, a vida é anulada, não é extinguida. Macabea está e se ausenta, o corpo existe, mas ela não. O cheiro, a vida e sua simples visão de mundo escondem sua potente condição humana, sinônimos no desenho da personagem. Pistas significativas para um leitor atento e propenso a uma divagação mais profunda acerca do sentido questionável da existência. Para isso, Clarice fornece pistas sutis, compondo um quadro pintado com a subjetividade de Macabea. O painel de informação, seja de cunho externo da situação, seja de cunho interno, apresenta ao leitor um motivador que aciona seus mecanismos para uma analise semiótica, situando-o com o universo da personagem e, conseqüentemente, com a história.

A discussão do texto parte de uma nordestina rica em possibilidades. Questionamentos sobre o porquê do existir pairam sobre Macabea, mas não em seu pensamento e sim em seu corpo, em seu mundo, em seu modo de ser, sem ser. O autor descreve e procura dar sentido ao que se é, dentro do que se expressa, no universo de signos montados como um quebra-cabeça da existência humana. O filme, por meio de uma ótica voyer, parte do indivíduo para o meio. Mesmo num debate acerca da infeliz nordestina, o sentimento torna-se similar no que tange ao eu do outro. Macabea é atingida por uma identificação causada, no processo de construção textual, pelo poético e pelo senso comum. O leitor pode seguir um caminho linear e enxergar apenas uma história de uma pobre retirante, tentando a vida em uma cidade grande ou, dependendo de suas vontades, ferramentas e anseios literários, pode adentrar em um mundo de significados que irá levá-lo a uma leitura de cunho existencial do seu próprio mundo.
No filme “A hora da Estrela”, a diretora Suzana Amaral capta o núcleo da história e desvenda o mistério de uma mulher supostamente comum. A escolha da atriz serve como ícone para o argumento a ser apresentado porque especificamente aquela atriz carrega as condições físicas e quixotescas, além do talento, que ajudam na composição, ou melhor, na transfiguração de Marcélia Cartaxo em Macabea. Suzana captura a personagem que ronda esse imaginário dos leitores de A Hora da Estrela e nos deixa sem saída. Nos restando apenas admitir – Olá, muito prazer, Macabea!
A diretora opta por uma narrativa clássica quanto à construção cronológica. Inicia o filme com o off da rádio relógio pautando os segundos do tempo e a voz do locutor, referência cabal, perguntando e respondendo assuntos, num jogo de “cultura inútil”, durante toda passagem dos primeiros créditos. O filme já começa dando respostas ao que não foi perguntado. Terminados os créditos, a primeira cena também se apoia no som – um som produzido por pausados toques em um teclado de uma máquina de escrever, sugerindo que alguém está datilografando muito mal, tal é a distância sonora entre um toque e outro. Enquanto isso, um gato lambe-se numa espécie de depósito, com caixas ao fundo. A câmera desliza, fazendo um reconhecimento do ambiente e buscando alguém, até que encontra Macabea e não consegue identificá-la. Suzana Amaral não foge do olhar introspectivo na personagem, mas deixa a história transcorrer com uma certa linearidade de ritmo, com cortes secos e sequências com quadros lentos ou estagnados, sem prejuízo à leitura do espectador.
A diretora explora bem a riqueza de detalhes proposta pelo livro no que diz respeito à descrição de Macabea. É quase possível a vertigem diante do perfil encardido traçado pela cineasta: uma mulher do avesso em pleno estado de dolorosa inexistência; uma dor que não pode ser curada com aspirina. A demonstração mais realista de que, às vezes, pode ser muito ausente, apático e sem perfume o existir, pode ser percebida durante o decorrer da história que o filme apresenta: a figura de Macabéa, o lugar onde vive, a postura das pessoas à sua volta e sua quase nula presença, perambulando pelo mundo. Manifestações muito bem apoiadas no argumento do livro e reforçadas com palavras que completam as imagens. Palavras nascidas de diálogos que constroem o ritmo crescente da personagem na medida em que ela é diminuída.
O filme se apresenta como um recorte do que Macabea traz enquanto personagem, não como resumo. O que é estar no mundo e não dar conta disso?