Abrindo arquivo na quarentena, revendo para não ficar cego de tanto ver – Fausto de Sokurov é como dar um pulinho ao inferno

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E por falar na morte, no bem, no mal…

É dentro de um limite da existência proposto pela ideia de Deus que o diretor Alexandr Sokurov alimenta sua narração cinematográfica em Fausto. No início dos créditos o diretor faz questão de anunciar ser uma livre inspiração na obra de Goethe. E por mais livre que seja essa adaptação, há no filme uma fidelidade constante, repleta de significados, pelo fato de se tratar de um poema dramático. Sokurov não esquece em suas cenas de elevar ao status poético seu dizer nas imagens, impregnando a linguagem visual com traços de luz e tempo que possam residir na poesia, assim como servir de morada. Segundos quase eternos nos transportam para a angústia ou para o prazer das personagens.

Toda a relação estabelecida entre Fausto e Mefistófoles se apresenta diante da necessidade financeira da qual o médico vive no filme de Sokurov. Enquanto no livro, o pacto entre os dois se dá diante de questões mais complexas. No entanto, o tom denso e caótico é mantido e o discurso do bem e do mal vive na esfera da interrogação, enquanto as personagens manifestam cada uma sua própria moral.

Fausto, muito mais cético, no filme, argumenta com Mefistófeles o que é certo, o que é errado, ainda que levado pelo Demo à prática do imoral. Mas quando se vê diante de Marguerite, a bela donzela, e o sentimento pelo qual é acometido, Fausto mostra suas fraquezas. E é por meio da luxúria, do dinheiro que Mefistófelis adentra o Doutor. Todo seu conhecimento científico de nada serve diante da possibilidade de ser feliz, ainda assim, Fausto justifica seus atos como sendo de origem nobre ou delegando ao outro sua responsabilidade.

O diretor, não tendo nenhum compromisso com uma fidelidade ao pé da letra a Goethe, concentra seu foco na fixação de Fausto por Marguerite.

Descrições à parte, o filme de Sokurov guarda em si uma experiência muito peculiar aos filmes desse gênero: a inquietação, o mal estar, a desorganização interna com as sensações provocadas por sua estética que é muito próxima do Fausto de Murnau (1888-1931), admitido pelo próprio Sokurov. O que o diretor apresenta na tela nos propicia uma aproximação com o que as artes plásticas fizeram pela arte, seu cinema nos faz sentir e, talvez, padecer de uma certa impotência diante da linguagem cinematográfica, quando não nos permite provar sensorialmente o que sua imagem apresenta. Em meio de toda sordidez, Sokurov inventa a luz.

Há em Fausto de Sokurov um inferno angustiante, sufocador e necessário.