
Era uma tarde tão triste quando ela partiu,
Na curva daquela estrada ela então sumiu,
Era como folha seca que vai onde o vento quer,
Me enganei quando dizia tenho uma mulher.
(A. Batista)
Esses versos abrem a sequência de entrevistas do documentário de Ana Rieper, Vou rifar meu coração. Um homem sem o menor pudor relata sua história de abandono pela mulher amada, cultivando um certo orgulho da relação, preservando, assim, a dignidade do seu amor.
O filme, que traz no seu argumento a relação do repertório musical brega com as histórias sentimentais de pessoas comuns, desafia qualquer um a não se identificar com o fato de ter sofrido até as últimas consequências por um grande amor e a não sair da sessão cantarolando uma frase piegas qualquer do cancioneiro cafona, romântico, popular, brega brasileiro.
O ponto de interação com espectador fica por conta dessa identidade presente no imaginário romântico, erótico e afetivo brasileiro. Ninguém sai impune das lambadas causadas pelas frases das músicas, consideradas por alguns, de mal gosto. As dores cantadas nas melodias de Agnaldo Timóteo, Waldik Soriano, Nelson Ned, Amado Batista, Peninha, Walter de Afogados, Wando, Lindomar Castilho… misturam-se às frases dos entrevistados: “Eu li num livro que a paixão é a coisa mais brega do mundo, “consume” o ser humano”; “o amor não é um encontro de orgasmos, é um encontro de almas” e “você só tem cara de santa e coração de satanás”
Ana consegue uma intimidade com os personagens que enriquece o filme, ele ganha uma naturalidade, tanto no cenário quanto no comportamento, as pessoas estão ali somente para falar de suas agruras amorosas e não só se relatam, como também se “delatam”, anunciando predestinação ou sina em suas aventuras.
A diretora não, só, quer mostrar, como, principalmente, quer ver o amor que partiu,o amor dividido, o amor da puta, o amor do machista, o amor da mulher, todxs amores, o amor de mentira, o amor que salva, o amor de corno, o amor da canção. Todos eles estão lá, se não falado, marcados nos corpos, cantados.
O documentário monta um painel colorido de um Brasil romântico ao extremo, apaixonado, dilacerante e vivo. O estranhamento causado pela honestidade com que alguns casais dão seus depoimentos permite que o filme não caia no humor barato, ainda que muitas vezes só nos resta rir. Uma melancolia que a todo momento se redime, em nome do amor.
Vou rifar meu coração soa como uma obra inacabada por seu universo de possibilidades, que em muitos momentos seduziu a diretora desviando o foco em busca de histórias irrelevantes para a proposta inicial. Mas o filme de Ana Rieper não perde o seu rumo e seu mérito reside aí, por se tratar de uma obra sedutora, despreocupada com uma problematização maior sobre o que é música brega. Seu interesse se limita em saber quem são essas pessoas que ouvem essas canções. O documentário pode não ser pleno em todos os caminhos que ele oferece, mas se torna um filme necessário ao coração.
E, ao contrário do que disseram algumas críticas, Ana Rieper aborda, sim, de forma sutil e engenhosa, o caso Lindomar Castilho (assassinato da esposa) e para esses eu só tenho a dizer um trecho de uma canção cafona: Pra quem sabe ler um pingo é letra eu posso decifrar / Seu jogo de amor, também sei jogar.
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