Joaquim (em feriado nacional na quarentena, desmistificando o herói Tiradentes).

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Libertas Quæ Sera Tamen

É tentador deixar se contaminar pelo discurso de que todos nós somos completos protagonistas e donos dos nossos destinos, mesmo em se tratando de um cenário mais amplo, como as relações políticas que desencadeiam os rumos de um sujeito, de uma cidade, de uma sociedade ou até mesmo de um país.

Parece que os heróis são sujeitos dotados de super-poderes e que sabem que suas próprias vidas são o quinhão a pagar para que grandes revoluções aconteçam, e nós, que aqui estamos, somos gratos pelas “escolhas” que estes “cristos” fizeram, pessoas “do bem”, “puras” e “sem contradições” que sabiam exatamente o seu destino trágico e ainda assim escolheram seguir na luta.

No belíssimo longa “Joaquim”, de Marcelo Gomes, nosso Cristo é Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, mas antes de “ir para a cruz” ele tem os longos cabelos “piolhados” cortados a faca pela escrava Preta (Isabél Zuaa). Ele também tem desejos: quer encontrar ouro no Sertão Proibido, quer subir de patente e faz questão de dizer que é filho de portugueses.

Nosso herói vive suado, encardido, se alimenta com a sopa feita e servida pela escrava, talvez a única heroína dessa história, que, em seguida, também, o serve sexualmente. O alferes Joaquim, que também arrancava dentes, possuía um escravo particular, sim nosso herói tinha um escravo (Welket Bungué), um rapaz de tratos elegantes, trazido de algum lugar da África, que o acompanha com devoção e respeito, quando não estava em casa com sua família.

“Joaquim” se passa num cenário semi-urbano, onde as tabernas dividem espaço com os prédios públicos e os “mendigos”. Os desafortunados são crianças indígenas, uma imagem que em nada lembra as fotografias de época a que estamos acostumados. Neste panorama, a linguagem cinematográfica substitui as frases de efeito escritas nos manuais de História. Diálogos muitas vezes de difícil compreensão e falados em muitas línguas. O indígena, o negro, a negra, os “mestiços” falam, cantam e desejam liberdade, ainda que tardia, enquanto o nosso herói corre atrás da promessa de uma vida melhor. Bem diferente dos livros didáticos!

A grande contribuição deste longa é, no entanto, a humanização desse herói, é lembrar que Tiradentes era um homem de seu tempo e que infelizmente acreditava numa revolução humanista e iluminista, que poderia transformar numa civilização o lugar que ele enxergava ser àquela mestiça e confusa sociedade.

Porém, de todos os revolucionários, Tiradentes foi o único esquartejado e degolado. Talvez porque preferiu ler as palavras dos intelectuais e das elites mineiras ao invés de ouvir os tambores dos quilombos, ou talvez porque simplesmente acreditou que poderia confiar em seus companheiros, que eles jamais o trairiam. Nunca saberemos, mas o que ficou em nossos livros foi a pálida e triste história dos vencedores brancos e plácidos, representadas em sua cabeça e cabelos longos, iguais ao de um salvador.

O filme é imperdível, e a nossa história também, mesmo que tardia.

Escrito por Fabiana Melo Sousa